Aldêmio9 Ogliari
ANEXO II – DA LEGÍTIMA DEFESA
- a) CONCEITO:
“Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem” (CP, art. 25).
- a) Natureza jurídica:
a legítima defesa é causa excludente da ilicitude ou da antijuridicidade (leia-se, do crime – CP, art. 23, II). É, de outro lado, um poder (conferido ao agente que está sendo agredido injustamente) que permite sacrificar bens alheios. Esse poder é reconhecido pelo Estado e pelo ordenamento jurídico, que aceita o sacrifício de bens jurídicos desde que a ofensa tenha sido necessária para salvar outro bem jurídico de igual ou semelhante valor.
- c) FUNDAMENTOS DA LEGÍTIMA DEFESA:
O primeiro e clássico fundamento da legítima defesa reside na tese hegeliana de que ela é a negação da negação do Direito (ou seja: o Direito não pode permitir agressões injustas). A agressão injusta é a negação do Direito. A legítima defesa é a negação dessa negação do Direito (isto é, sua confirmação). O outro fundamento tem por base a defesa dos direitos individuais, que é constitucionalmente fomentada. Na legítima defesa, em suma, o agente atua para proteger direito individual assim como para defender o ordenamento jurídico (já que o Estado não pode atuar no momento do fato para realizar essa defesa).
REQUISITOS DA LEGÍTIMA DEFESA:
São quatro os requisitos de legítima defesa. Três são objetivos e um é subjetivo.
- a) Agressão injusta, real, atual ou iminente: agressão significa ataque humano (ou seja: ataque humano dirigido contra bens jurídicos legitimamente defensáveis). Somente a ofensa humana é que permite legítima defesa. Logo, ataque de um animal não a autoriza. Quem mata um animal pra se defender atua em estado de necessidade (não em legítima defesa).
Exceção: quando o animal é utilizado como instrumento de ataque a um ser humano (o dono de um cão, que tem o domínio do fato, utiliza-o para atacar a vítima). Nesse caso, a reação da vítima será legítima defesa (porque se trata de um ataque humano, sendo o animal mero instrumento). De outro lado, recorde-se que quando o ser humano usa um animal pra cometer o delito não se trata de autoria mediata (sim, imediata, na forma indireta).
A agressão, de outro lado, pode ser ativa (ataque a socos, v.g.) ou passiva (carcereiro que não libera o encarcerado, apesar da existência de alvará de soltura). Pode ser dolosa ou culposa. Fundamental é que exista concretamente. Deve, portanto, ser real. Se a agressão for imaginária (suposta), estaremos diante da denominada legítima defesa patativa (que é causa excludente de culpabilidade, não da antijuridicidade, como veremos na trigésima primeira seção).
A agressão, ademais, não precisa ser injusta (ilegal, antijurídica). Não necessariamente precisa ser típica. Exemplo: furto de uso (pode a vítima reagir proporcionalmente e impedir sua consumação). Não importa se o agressor é ou não culpável (maior, mentalmente são etc.). A culpabilidade do agente não interfere na injustiça da agressão. Sendo injusta a agressão, cabe legítima defesa. Não há dúvida que cabe legítima defesa contra ataque de menor, de louco etc.
A agressão justa, ao contrário, não a permite. Agressão (ou melhor, constrangimento) de um oficial de justiça que está cumprindo ordem de despejo não autoriza legítima defesa (porque é justa, é legal). E se o agente acreditou que a agressão (justa) fosse injusta? Há nesse caso um erro de proibição indireto (erro sobre uma causa justificante – mais precisamente erro sobre a legítima defesa), que conduz a solução do problema para o campo da culpabilidade (para excluí-la ou atenuá-la, conforme o caso – erro de proibição indireto).
Não é possível nunca duas pessoas atuarem uma contra outra em legítima defesa real (leia-se: jamais podem estar ambas em legítima defesa real). No clássico exemplo dos náufragos (tábua de salvação), os dois que disputam a tábua não estão em legítima defesa, sim, em estado de necessidade. Porque a agressão de ambos é legítima defesa. E contra agressão legítima não cabe legítima defesa real. Se A está em estado de necessidade (praticando, portanto, uma agressão justa), jamais B pode estar em legítima defesa contra ele.
Não existe legítima defesa contra agressão justa (por exemplo, contra quem atua em estado de necessidade).
Cabe legítima defesa real contra quem está atuando em legítima defesa putativa?
Sim, porque nesta última a agressão é injusta. O sujeito está atuando antijuridicamente, embora sob crença contrária. Cabe legítima defesa contra o excesso em qualquer causa justificante? Sim, porque todo excesso é antijurídico. Admite-se, de outro lado, legítima defesa putativa contra (quem está em) legitima defesa real (é a situação do agente que imagina que o defensor legítimo estivesse atacando injustamente a vítima): A surpreende B agredindo C. A pensa que essa agressão é injusta, quando na verdade B só estava de defendendo do ataque ilícito de C. A, de qualquer modo, supôs uma agressão injusta, por isso é que está em legítima defesa putativa (não real).
A provocação, por si só, não impede que o agente atue em legítima defesa, salvo se se trata de provocação agressiva. A provocação, de outra parte, não se confunde com o “pretexto de legítima defesa”. Quem cria situação artificial (de legítima defesa) para matar a vítima não age em legítima defesa.
A agressão, por último, precisa ser atual (que está acontecendo) ou iminente (prestes a acontecer; atos preparatórios muitos próximos da execução já autorizam a legítima defesa). Agressão pretérita (que já não coloca qualquer bem jurídico em risco) ou futura não autoriza a legítima defesa.
Diante de uma agressão futura, não é cabível a chamada legítima defesa preventiva ou antecipada (que constitui excesso, como veremos logo abaixo). Mas é preciso distinguir a agressão futura da iminente. Nesta última os bens jurídicos da vítima ingressam no raio de periculosidade da conduta do agressor iminente, ou seja, já existe perturbação de bens jurídicos (e isso justifica a legítima defesa). Impõe-se analisar com cuidado cada caso concreto, para se diferenciar a agressão futura da iminente.
Enquanto perdura a agressão (num seqüestro, v.g.) sempre é cabível a referida justificante. Quem aceita “desafio” (ou duelo) não atua em legítima defesa, porque nessa situação não há uma agressão inevitável atual ou iminente.
No duelo quem mata o adversário responde por delito doloso, porque nele ninguém atua se defendendo, ao contrário, ambos são agressores. A reação legítima, por seu turno, precisa ser imediata (não pode ser remota ou tardia).
- Ameaça ou ataque a direito próprio ou alheio: há legítima defesa própria quando o agente defende direito seu. Fala-se em legítima defesa de terceiro quando o agente atua para defender direito de terceira pessoa. Qualquer direito pode ser defendido legitimamente: vida, liberdade individual, liberdade sexual, patrimônio, honra etc.
Pode-se agir em defesa de um animal, mas essa reação tem que ser proporcional. O animal integra o patrimônio do seu dono e, ademais, merece ser defendido de ataques ilícitos. Mas a reação não pode ser abusiva. Não pode haver excesso.
Também é sustentável a tese de que inclusive um direito coletivo pode ser defendido (defesa da ecologia, por exemplo). De qualquer modo, não pode haver excesso. Mas não há que se falar em legítima defesa na situação de quem mata o cônjuge adúltero no momento do adultério (ou por causa do adultério). Juridicamente isso é impossível (diante da absoluta desproporcionalidade da reação). Na prática, entretanto, ainda há conselho de julgamento (no Tribunal do Júri) que decide de modo diverso.
O condenado à morte (nos países que ainda admitem a pena de morte) não pode agir em legítima defesa caso venha a praticar alguma conduta lesiva contra o executor da morte, visando a salvar sua própria vida que, nesse caso, já não se acha juridicamente protegida.
- 3. Necessidade da reação e proporcionalidade entre o ataque e a reação: a defesa, para ser legítima precisa ser necessária para a defesa de bens jurídicos. De outro lado, deve ser proporcional. A relação de proporcionalidade se estabelece entre o ataque e a reação (leia-se: entre o bem jurídico sacrificado e o protegido). Nosso Código Penal não usa a palavra proporcionalidade no art. 25 (“entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”), mas faz duas indicações nessa direção:
(a) repulsa com os “meios necessários” e
(b) moderação na repulsa.
Se o sujeito ataca a socos, por exemplo, em princípio, a reação não pode ser armada (não é preciso arma para se defender de ataque a mãos limpas). Mas tudo isso é muito relativo. Depende de quem é a pessoa que ataca e de quem se defende. Ataque a socos de um lutador de boxe lógico que vai permitir à vítima (inferiorizada corporalmente) ração armada (proporcional). Ataque de um lutador de artes marciais autoriza reação armada (pode-se chegar até à morte, desde que tenha havido proporcionalidade).
Moderação: ainda que tenha havido escolha de um meio “desnecessário”, mesmo assim, fundamental, de qualquer modo, é sempre verificar a moderação. A, desnecessariamente, escolhe como meio de defesa o uso de uma arma de fogo, porém, efetua um disparo de advertência para o alto. O meio é desnecessário, mas houve moderação no seu uso. O equilíbrio na legítima defesa reside, destarte, na moderação da repulsa. O excesso decorre da imoderação.
No plenário do Júri, como sabemos, todos os requisitos da legítima defesa são desdobrados.
Um deles versa sobre a necessidade do meio escolhido; outro diz respeito à moderação. Caso os jurados neguem o quesito da “necessidade do meio”, isso não significa o fim da legítima defesa; nessa hipótese o juiz deve fazer a votação (obrigatoriamente) da moderação, porque, afinal, o mais relevante é a moderação da reação (pouco importando o meio escolhido).
- Aspecto subjetivo: o agente precisa atuar com consciência de que defende direito próprio ou alheio. O desvalor da ação (intenção de matar) desaparece quando o agente atua para a defesa de direitos. Uma ação positiva (defesa de direitos) anula o desvalor da ação de causar a morte de outra pessoa.
Legítima defesa defensiva e agressiva: a defensiva ocorre quando a reação não constitui fato típico (A reage contra ataque injusto, apenas imobilizando os braços do agressor); de outro lado, é ofensiva ou agressiva quando a reação configura fato típico (o sujeito reage e causa, v.g, lesão corporal no agressor). Legítima defesa agressiva que atinge o ofensor não autoriza indenização civil.
Se o agente, em legítima defesa real, entretanto, erra na execução e mata um inocente (legítima defesa real com aberratio ictus) está absolvido criminalmente (não responde por crime), mas tem obrigação de indenizar os donos civis (porque atingiu um inocente). Também cabe indenização civil quando a agredido, para se defender, coloca uma linha de tiro um inocente. Terá que indenizar (embora penalmente não responda por nada).
Legítima defesa putativa, subjetiva e sucessiva: a legítima defesa é putativa quando a agressão é imaginária (suposta). Está regida pelo art. 20, § 1.º, do CP (é causa de exclusão da culpabilidade, quando inevitável, segundo nosso ponto de vista – voltaremos a esse tema quando do estudo da culpabilidade). Essa legítima defesa sempre permitirá a indenização cível, porque não exclui o injusto (a ilicitude).
Legítima defesa subjetiva: é assim denominado o excesso exculpável ou exculpante na legítima defesa (o agente se excede na legítima defesa, porém, qualquer pessoa nas mesmas circunstâncias faria a mesma coisa. Exemplo: local ermo, à noite, o agente é atacado por alguém desconhecido; dispara uma vez e vê o “vulto” se movendo; efetua outros cinco disparos; verifica-se depois que era uma criança de onze anos).
O excesso exculpável (que deriva de medo ou susto) isenta o agente de pena (elimina a culpabilidade) seja pela dirimente do erro de tipo permissivo invencível (CP, art. 20, § 1.º, primeira parte), seja pela inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade.
Legítima defesa sucessiva: ocorre na repulsa contra o excesso abusivo do agente, isto é, na legítima defesa sucessiva temos duas situações de legítima defesa, uma depois da outra. Primeiro A agia em legítima defesa. Uma vez dominado o agressor, passa a agredi-lo, em excesso. A reação contra esse excesso configura legítima defesa também e sucessiva porque antes A estava amparado por essa excludente e agora é B que se apóia nela. Houve legítima defesa nos dois momentos: uma sucessiva a outra.
Legítima defesa e estado de necessidade: ambas são causas de exclusão da antijuridicidade, porém, inconfundíveis:
(a) na primeira há ameaça ou ataque a um bem jurídico; na segunda há um conflito para vários bens jurídicos diante de uma situação de perigo;
(b) a primeira exige agressão humana; na segunda o perigo pode decorrer de fato humano ou acontecimento natural (tempestade, v.g.);
(c) na primeira os interesses do agressor são ilegítimos; na segunda os interesses dos que estão em conflito são legítimos e juridicamente protegíveis (daí a incidência dos princípios da necessidade e proporcionalidade, para justificar o sacrifício de um deles).
Participação de um terceiro na legítima defesa: o terceiro que participa da legítima defesa, auxiliando o agente na defesa de seu direito (ou alheio), por nada responde. Se o fato não configura um injusto penal para o agente principal, por nada responde o partícipe, visto que a participação exige que a conduta principal seja típica e antijurídica. Em se tratando, entretanto, de legítima defesa putativa, a solução é distinta: ela exclui tão-somente a culpabilidade, não o injusto penal. Logo, gera efeitos civis.
Legítima defesa real com “aberratio ictus”: Se o agente, diante de uma situação de ataque real, reage contra o agressor, mas infelizmente acaba atingindo um inocente (um terceiro inocente ou é um terceiro – um atirador de elite, v.g. – que acaba atingindo a própria vítima), está absolvido no âmbito criminal (agiu em legítima defesa), mas terá que indenizar no campo civil.
Legítima defesa e exercício regular de direito: na primeira existe uma agressão humana injusta (e é isso que caracteriza a legítima defesa). Não havendo essa agressão humana injusta, desde que haja uma norma permissiva autorizando uma liberdade de ação, estamos diante do exercício de um direito. Quem defende sua vida diante de uma agressão humana injusta está em legítima defesa. A mulher que delibera fazer o aborto em caso de estupro está exercendo um direito (uma liberdade de ação). Aldemio Ogliari – OAB-DF 4373
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